O ano de 1968 pode ser considerado como o mergulho numa viagem ou a partida para uma odisséia ainda não acabada. Se em maio de 1968, estudantes saíam às ruas na França, em junho, no Brasil, cerca de cem mil pessoas ocupavam o Centro do Rio, num dos, até então, mais importantes protestos contra a ditadura militar.
Estudantes, professores, operários, artistas, intelectuais, religiosos, trabalhadores de diferentes ofícios, filhos, mães e pais estavam lá na passeata dos 100 mil, lutando pela democracia e pela solidariedade; sonhando um mundo livre dos autoritarismos, das ditaduras, das censuras, dos conservadorismos e das proibições.
Na histórica passeata de 26 de junho de 1968, que merece ser comemorada e celebrada – ao contrário do que sugerem alguns colunistas – estavam Oscar Niemeyer, Carlos Scliar, Chico Buarque de Holanda, Ernandes Fernandes, Elayne Fonseca, Ziraldo, Clarice Lispector, Fernando Gabeira, Milton Nascimento, Gilberto Gil e tantos outros. Naquele dia, Gilberto Gil comemorava 26 anos de idade e saboreava a alegria do lançamento do seu disco “Gilberto Gil” e a preparação do lançamento para julho daquele mesmo ano do “Panis et Circences”, projeto coletivo e marco fundamental da tropicália.
Com Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça Glauber Rocha, criador desse famoso bordão do cinema brasileiro, assistiu às manifestações populares. Com o material filmado, ele deixou inacabado o curta 1968. No mesmo ano, Gláuber viria a finalizar o que por muitos veio a ser considerada a sua obra-prima, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, que mistura antropofagicamente cordel e ópera, e de forma alegórica fala sobre o folclore nordestino e o heroísmo do cangaço ante o aristocrático coronelismo.
Setores da vanguarda cultural do Ocidente, no final dos anos 60 e início dos anos 70, anunciaram a morte ou, no melhor dos casos, o desaparecimento próximo dos museus. Em agosto de 1971, como informou Hugues de Varine, durante a IX Conferência Geral do Conselho Internacional de Museus, realizada em Paris, Dijon e Grenoble, o beninense Stanislas Adotévi e o mexicano Mario Vásquez proclamavam abertamente: a "revolução do museu será radical, ou o museu desaparecerá".
O necrológio do museu, traduzido a partir de um determinado desejo político, aparecia acompanhado de um discurso que colocava em movimento críticas severas ao caráter aristocrático, autoritário, acrítico, conservador e inibidor dessas instituições, consideradas como espécie em extinção e, por isso mesmo, apelidadas de "dinossauros" e de "elefantes brancos". No entanto, 20, 30 ou 40 anos depois, verificou-se que os museus não só não morreram, como se proliferaram e ganharam destaque na cena cultural e na vida social do mundo contemporâneo.
De qualquer forma, as críticas dirigidas ao caráter dinossáurico de algumas instituições museais surtiram algum efeito e parecem ter estimulado os ventos reformistas e modernizantes que, nas décadas de 1980 e 1990, passaram por algumas delas. A modernização trouxe maior preocupação com os serviços destinados ao público e maior atenção para as práticas pedagógicas, além do aprimoramento dos recursos expográficos e do refinamento dos procedimentos técnico-científicos nas áreas de preservação, conservação, restauração e documentação museográfica.
Num mundo que passou a adotar o espetáculo como medida de todas as coisas, o próprio caráter dinossáurico foi transformado em elemento espetacular. Como um corolário da cultura espetacular absorvida e desenvolvida pelos museus clássicos consagraram-se as chamadas mega-exposições, algumas tratando de artes, outras de tesouros históricos e outras ainda de ciências e de dinossauros, todas sempre espetaculares. Os dinossauros musealizados e os museus dinossáuricos voltaram à moda. Os ventos reformistas, no entanto, não pretendiam abolir e não aboliram os acentos autoritário, aristocrático, colonialista e imperialista de muitas dessas instituições. O que se pretendia evitar - e se evitou - é que um museu como o Louvre, considerado como "protótipo do almoxarifado de um patrimônio burguês", fosse incendiado, como simbólica e ironicamente preconizavam os representantes da geração libertária de 1968.
A sugestão que fica é a de que o diagnóstico da morte ou do desaparecimento próximo dos museus - considerados como lugares consagrados pela tradição cultural da burguesia ocidental - deve ser lido como parte dos movimentos político-sociais de crítica e contestação que, nas décadas de 1960 e 1970, atingiram em cheio diversos valores institucionalizados. Se, por um lado, essas críticas parecem ter contribuído para a invenção de um novo futuro para os museus clássicos e tradicionais, por outro, parecem ter colocado em movimento o desejo de se constituir uma nova imaginação museal, até então não prevista.
No início da década de 1970, essa nova imaginação museal começou a ganhar visibilidade a partir de experiências desenvolvidas em diversas partes do mundo, sem que entre elas houvesse, inicialmente, visíveis canais de intercâmbio. Nesse quadro, situa-se o surgimento do ecomuseu, que, segundo Hugues de Varine, um dos participantes da geração de 1968, e criador do termo, nada mais era "do que uma tentativa, um convite a dar provas de imaginação, de iniciativa e de audácia" no campo dos museus, normalmente considerados como fortalezas da tradição conservacionista.
A toda ação libertária corresponde uma reação repressora; a toda contracultura corresponde uma cultura. E foi assim que 1968 ficou marcado não apenas como o ano de uma das maiores revoluções modernas, mas também como um dos anos de maior repressão.
No Brasil e no mundo três políticos memoráveis haviam acabado de ser derrubados: Kennedy fora assassinado em novembro de 1963; Kubitschek entregara o poder a Jânio em 1961 e, embora fosse o pré-candidato mais bem cotado para uma eventual eleição presidencial em 1968, teve seus direitos políticos cassados; Kruschev fora deposto na União Soviética por um golpe das alas mais conservadoras do Partido Comunista. Sessenta e oito foi ainda o ano da dura repressão à Primavera de Praga, na Tchecoslováquia, e do assassinato de Martin Luther King, autor do clássico discurso “Eu tenho um sonho”.
Ao longo dos últimos quarenta anos, no mundo dos museus, Hugues de Varine, um dos militantes de Maio de 1968, veio a ser presidente do Conselho Internacional de Museus (Icom), consultor internacional para assuntos referentes ao desenvolvimento local e à museologia social e um dos principais atores para a transformação dos museus e fortalecimento de suas funções sociais. De igual modo, Gilberto Gil, um dos militantes da Passeata dos 100 mil, realizada na cidade do Rio de Janeiro, veio a ser um músico e um intelectual consagrado. No período de janeiro de 2003 a julho de 2008, ele esteve à frente do Ministério da Cultura e desenvolveu um trabalho exemplar a favor da democratização dos museus, compreendidos como ferramentas capazes de contribuir para a dignidade social. Hoje, para a tristeza de muitos, Gilberto Gil deixa o Ministério da Cultura, mas o sonho não acabou.
A viagem e a odisséia de 1968 não terminaram; os seus atores, o seu ideário, as suas utopias libertárias, as suas forças transformadoras continuam em movimento, continuam fertilizando novos processos transformadores. Por tudo isso, vale a pena comemorar os 40 anos do extraordinário ano de 1968 e a transformação radical do universo museal. E para o sempre Ministro Gilberto Gil mandamos: “aquele abraço”.