20 outubro, 2010

Antes e depois da morte da pintura


Antes e depois da morte da pintura

1. 1886 e 1968

1886, com Le déjeuner sur l’herbe de Manet, senão mais cedo, é o início da modernidade. Uma modernidade pensada por Baudelaire em Le peintre de la vie moderne, através da figura de Constantin Guys. Uma modernidade que era a assumpção do efémero, do transitório, do fugitivo. Uma modernidade que, nas palavras de Nietzsche, na primeira fase de Nietzsche, em O nascimento da tragédia, implica pensar a arte sob a óptica da vida, isto é, pensar a arte no plano da metafísica.

1968, senão mais cedo, é o início do questionar a pintura - o romance tinha sido confrontado com o nouveau roman (Robbe-Grillet e outros), o teatro tinha sido confrontado com o teatro do absurdo, o cinema tinha sido confrontado com a nouvelle vague (Godard e outros), a poesia tinha sido confrontada com o concretismo brasileiro (Haroldo de Campos e outros). E ao interrogar-se a pintura, decreta-se a sua morte – a morte da pintura.

2. Warhol e as marcas

Quando Warhol escreve «I’m a factory.», como podemos interpretar esta afirmação aparentemente insólita? Por um lado, Warhol fala da arte como sendo uma produção em série. Por outro lado, ao escrever «I’m a factory.», des-sacraliza a arte. A partir de agora, com a pop, a arte tem a ver com o quotidiano do americano médio, tem a ver com a sociedade de consumo americana. Por fim, ao escrever «I’m a factory.», Warhol encontra-se, a título de exemplo, com Jasper Johns, o Jasper Johns da bandeira americana, com Tom Wesselmann, o Wesselmann da mulher-boneca, a pin up, e do quotidiano americano, com Roy Lichtenstein, o Lichtenstein da banda desenhada, um modo de expressão artística tipicamente americano. De facto, Warhol e a popsão, para utilizar o título de um filme de Godard, a expressão do made in USA. Conta-se, até, que aquando de uma visita de Warhol a Itália, tendo-lhe um jornalista perguntado o que ele mais tinha admirado, obteve como resposta: os McDonalds…

Aquilo que a pop, e Warhol em particular, operam na cena artística é isto. Em primeiro lugar, enterram o projecto que as vanguardas artísticas do século XX (mais rigorosamente: desde o neo-classicismo até à I Escola de Paris) tinham presentes, obsessivamente presentes. Dir-se-á: mas esse enterro já tinha sido anunciado por Duchamp, pelosready-made de Duchamp. Isto, todavia, só é verdade em parte. Duchamp, no que se refere aos ready-made, empreende uma alteração do significado do objecto artístico e do espaço que o acolhe (o museu, a galeria). Warhol e a pop, pelo contrário, apresentam o quotidiano enquanto significado máximo do objecto artístico e do espaço que o acolhe. Por outras palavras: Warhol e a pop democratizam a arte. Mas o que é, então, democratizar a arte? É esta, justamente, a segunda consequência do trabalho da pop e de Warhol: colocar a arte ao nível do magazine de grande circulação. O que tem uma outra implicação: aparentemente, a arte transfere-se para o mesmo plano dos media. Daí a célebre afirmação de Warhol: cada um (subentenda-se: cada americano) tem direito a cinco minutos de fama. Ou seja: já não interessa a dialéctica entre passado e futuro, uma questão que atravessou a modernidade (a obra de Baudelaire – mas, também, a de Walter Benjamin), o que interessa é o presente (está aqui, precisamente, a ruptura com Duchamp). Mais: já não interessa a problemática em torno do Ser e da Aparência (Nietzsche e Heidegger sempre perseguiram, nas respectivas obras, a eclosão, a manifestação do Ser), até porque «ser» e «aparência» confundem-se no território dosmedia. O que interessa é a vida - não o conceito de vida em Nietzsche, um conceito na sua essência metafísico, mas a vida quotidiana e os seus cinco minutos de fama. Depois disso, depois dos cinco minutos de fama, o esquecimento. Assim, qualquer beleza é efémera, transitória, fugitiva – ainda que órfã, pois já não há lugar para a beleza eterna (e, definitivamente, é arrumada a dialéctica que percorre a obra de Baudelaire – mas, também, a de Nietzsche, de Heidegger, de Benjamin - entre beleza eterna e beleza efémera, transitória, fugitiva).

Aquilo que a pop, e Warhol em particular, operam na cena artística é isto: a obra de arte, convocando o presente, sendo o presente, é um presente icónico, à semelhança da pintura bizantina. Mas, é um ícone profano, quotidiano, fugidiamente presente. Ora, é neste fugidiamente presente que a pop e Warhol se afastam de Duchamp. Há, porém, outros sinais de afastamento: a pop e Warhol são símbolos de uma cultura made in USA, e já não de uma cultura universal ou pretensamente universal. Aliás, é justamente com a II Guerra Mundial, e com a fuga ao nazismo, que acontecem os grandes movimentos migratórios para os EUA. O que se traduz num fenómeno importante: a Europa, a Europa ocidental, americaniza-se, e os EUA europeízam-se. E Warhol incorpora este fenómeno sócio-cultural na sua produção. Tal como um outro: para Warhol, a factory implica a interdisciplinariedade (fotografia, cinema, pintura, música). Ora, esta incorporação das mais variadas expressões artísticas na factory, foi, afinal, o embrião da morte da pintura que 1968, senão mais cedo, interrogou em vários textos teóricos.

3. Algumas marcas neo-

Sendo assim, a pós-modernidade (conceito surgido nos anos 70 do século XX – com Lyotard, por exemplo) implica o narcisismo, os tais cinco minutos de fama preconizados por Warhol. Implica a defesa do local num contexto global. Implica a cultura do efémero e do profano, mas numa deriva que abre a religião fundadora da civilização ocidental a outros credos, propiciando o multiculturalismo (na religião e não só). Implica a cultura do transcendente em tempos de abertura ao imanente (o corpo, a natureza). Implica a cultura do digital. Implica, definitivamente, a questionação da galáxia Gutenberg (McLuhan). E com essa questionação, a definitiva abertura ao virtual. Por isso, a pós-modernidade não é a era do vazio (Lipovetsky), mas a época das marcas. A época que deixa marcas, donde muito mais política do que possa parecer – como muito mais lúdica, também. Que é, afinal, o que está por detrás da tal afirmação de Warhol, que diz: «I’m a factory.». Dir-se-á, entretanto: há, nos finais do século XX, um regresso à pintura. Pois, há. Só que esse regresso à pintura vai a par com outros regressos, com outras re-leituras das vanguardas. E essas re-leituras das vanguardas começam todas com o mesmo prefixo: neo-. Outra marca da pós-modernidade.